segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Das trevas ao coração


Lang, Fuller, Ford, Hawks, Hitchcock, Leone, Siegel. Filho de um western spaghetti e de um policial pós-noir (moderno), herdeiro de um cinema (clássico) americano. “O mais clássico dos modernos, o mais moderno dos clássicos”, alguém disse, serve perfeitamente pra Leone, acredito; cabe em Clint. Ficar repetindo que Clint Eastwood segue a premissa de um cinema clássico por apresentar uma “narrativa clara” soa meio estranho dentro de Hollywood, já que, produtora ainda hoje de contadores de estórias, preza pelo grande público (que espera uma estória palatável narrativamente). Clint – verdade seja dita - sabe agradar este público: oferece uma grande estória, com muita emoção (e ação) e uma narrativa clara (o que não quer dizer convencional, ou comportada). Seus filmes vendem muito bem. Graças a deus.
Existem níveis de leitura.
Clint Eastwood diretor: amadurecimento de uma imagem-clint: a complexidade de um cavaleiro solitário das trevas que acumula rugas e cavalga a melodia melancólica de cada nova nota. Existem os filmes em que atua (e aí entra a imagem-clint, que sai das trevas pra ganhar mais uma ruga, e voltar), e existem os filmes em que não atua.
A troca (The changeling) Clint “apenas” dirige. Desta vez são: a mãe coragem que perdeu o filho, o psicopata injustificado, o garoto inocência perdida, as famílias de filhos brutalmente assassinados, e resumindo: o espectador - na catarse - que mergulhará nas trevas que a música de Eastwood vai melancolicamente encharcar.
É normal na crítica defender ou criticar um filme de Clint Eastwood pelos motivos errados. Por exemplo, elogiar um filme policial como “Dívida de sangue” pela trama bem amarrada na descoberta do vilão (enquanto existe uma reflexão sobre o envelhecimento de um corpo que atravessou a história cinema, além de metalinguagem do próprio gênero e sua arqueologia significante, etc – todas reflexões que só Clint poderia fazer, e faz). E: criticar um filme como “Sobre meninos e lobos” (ou mesmo “A troca”) porque os personagens fazem um “tipo afetado”, “que vivem chorando”... enfim, é como nos dramas dos Átridas, é trágico, é triste... não seria este o cinema de Clint quando não atua: um cinema de lágrimas?
É trágico, vazio e solitário o fim da travessia dos seus personagens. Não existe redenção para o personagem clintiano! O filme acaba, os créditos sobem, a música caminha para os últimos acordes... limpamos as lágrimas e saímos da caverna.
O que é a essência de um autor como Clint Eastwood? Onde se deve procurar o coração dos corações!?
Sempre foi problemática a noção de autor na sétima arte. Um homem pinta um quadro, uma mulher escreve um livro. Clint Eastwood nunca escreveu seus roteiros, e a maioria foram adaptados de livros. A questão é: Sabemos que vemos um filme de Clint Eastwood... porquê?
Se gastam palavras e palavras falando sobre o roteiro dos filmes do velho mestre – existe uma velha mania de recontar o óbvio. Será que é por aí que se procura? Por exemplo: 90 % de um texto falando todo o percurso que Collins faz no processo (kafkiano) social e uma conclusão do tipo: “Clint, o bom e velho mestre, com sua linguagem clássica, nos dá mais um belo e emocionante filme, crítico e atual”. È óbvia uma reflexão do cineasta na questão da Justiça, da América, da Democracia, da Jurisprudência em sua filmografia; corrupto ou justiceiro, ou os dois ao mesmo tempo, Clint sempre questionou as instituições e a decisão – sempre complicada - de uma punição ou de uma remissão. Falar que o filme é maravilhoso por isso é pouco para um cineasta como este – é o mínimo. A questão da crítica social em ‘A Troca’ é um coração do filme, assim como a bela produção: reconstrução de uma época, com direito à nostalgia de abertura da Universal e fotografia que começa e termina em preto e branco. Lindo! Dois corações, mas procurar O!
A questão talvez seja por aqui: uma troca de olhares, um olhar de esperança, um último olhar. Não falo apenas das personagens. Quando a câmera se posiciona em primeiro plano e a personagem olha para fora do quadro, no raccord veremos o que ela olha, seremos um só olhar. Identificação: o drama de um personagem, durante a projeção, é o nosso drama, o drama do eu que é nós. É o drama! É o melodrama? Clint Eastwood constrói os primeiros 15 minutos do filme de modo inesquecível, são últimos olhares, que ecoarão nas caixas de nossas memórias a cada troca de olhar da personagem com o outro, a cada olhar de esperança da personagem com o desconhecido. É necessário apenas um acorde, uma atmosfera, as trevas pesam sobre nós, o coração bate; resgatamos, na caixa, a memória daquele último olhar.
A música emocionante, chorada, melancólica de Clint talvez seja a chave para entender que ele, além de fazer diversos e excelentes filmes de gênero, críticos éticos e sociais, intertextuais à sua obra e a uma arqueologia do cinema; também, na unidade de seu percurso, faz uma elegia: todos os seus filmes (policiais, westerns, love stories, war movies, tragédias) constituem um verso a mais num grande poema lírico e triste: uma elegia sobre os extremos humanos: as trevas e o coração.


Mateus Moura