sábado, 9 de agosto de 2008

A heroína trágica



“Nenhum mortal é feliz até o fim, nenhum, nem afortunado, pois nunca nasceu alguém imune à dor”. (Eurípides)

Prólogo: Jazz, como um trumpete rasgante ela surge em cena dando bolsadas na câmera-subjetiva-dele: o cafetão; que bêbado, derrubando-lhe a peruca, cai, suplicando misericórdia. Ela espirra água na sua cara e arranca-lhe do bolso o dinheiro. Ela está roubando ele? Logo sabemos que não. É uma prostituta, uma mulher do submundo, é escória, mas tem princípios. Pega o que lhe é de direito, rasga as evidências de sua existência, apanha a peruca, e ajeita (em quadro)... créditos... Fuller mostra seu cartão de visitas, a violência da emoção, a criatividade original, Sam Fuller contra o banal. Sua personagem entrará num novo mundo, numa cidade distante. Seu desejo lhe guiará para outra vida (uma que não espelhe notas, uma garrafa e uma cama para o resto da vida). De prostituta à enfermeira de deficientes físicos. Ela irá sorrir, irá sonhar. O mundo parecerá melhor. Parecerá.


Samuel Fuller dá ao mundo em 64 a continuação de “Paixões que alucinam”, a mesma atriz (a soberba Constance Tower), que viveu uma dançarina de cabaré no filme de 63, interpreta uma prostituta agora em 64. Em “Paixões que alucinam”, seu amante, enlouquecido pelo prêmio Pulitzer de jornalismo, enlouquece ao tentar solucionar um caso de assassinato em um manicômio. Ela afunda junto com ele, mas em lágrimas e tragédia. Constance Tower é a heroína fulleriana. Diferente do herói de Fuller: duro e sem ilusões, a heroína tem ilusões, sonha, mas é dura, e não lhe é permitido o cobertor da insanidade. O mundo e o Destino sempre a derrubam. Ela afunda, mas limpa as lágrimas, levanta, e segue.

Sam Fuller é um grande construtor de grandes metáforas. Assim como em “Paixões que alucinam”, - fazendo alusão ao manicômio - a pequena cidade de Grentville é microcosmo da América. Com atuações magníficas, planos inesquecíveis, brincadeira com gêneros hollywoodianos, o artista americano maldito assina seu último filme nos EUA antes de partir pra Europa: O beijo amargo (The naked kiss, 64). Ninguém critica mais a América do que os americanos.

Anarquista, iconoclasta, maldito, corrupto, contrabandista e gênio. Fuller nos apresenta, com sua câmera desnudadora, a podridão da hipocrisia. Com seu habitual irônico humor negro, nos apresenta a cidade com uma bela faixa, que nos faz rir: “Desfile de moda para crianças deficientes. Clínica Ortopédica de Grentville”. O contraste que o diretor estabelece entre o submundo e o outro mundo é exagerado de propósito, mais uma carta irônica na manga do sátiro. Quando Kelly (Constance Tower), mulher dos dois mundos, se integra ao outro mundo, as cenas chegam ao paroxismo do confortável. A dona de casa onde Kelly se hospeda é tão doce que chega a ser risível. Mas nada é simples nos filmes de Samuel Fuller, nenhum personagem é apenas um estereótipo. Todas são símbolos, mas carregam vida. Todos sofreram ou sofrem alguma tragédia. A dona de casa, por exemplo, é solitária, o homem que esperava não sobreviveu à guerra. Griff (Anthony Eisley) é como Kelly, transita entre os dois mundos. È mais frio, mais desconfiado, sem ilusões, mais podre, mais honestamente podre: o herói fulleriano.

O diretor, analista emocionado do ser humano e suas paixões, trata pela primeira vez na história do cinema do tema da pedofilia. Grent (Michael Dante), supostamente um homem caridoso, rico, moralmente perfeito, é também um pedófilo. Apaixonado por Kelly, aceita se casar, mesmo sabendo do seu passado “bombom”. Kelly, porém, quando aceita, desconhece seu presente doentio. Grent acredita que eles – anormais – podem se acertar, ser felizes e aceitar as inclinações mórbidas, assim como os passados sujos. Ela não entende assim, não aceita sua doença, não aceita acordo, nem sequer cogita a possibilidade. Como um doce piano que esparrama a melodia triste da tragédia, ela levanta a mão, e o mata. Seu mundo ruiu mais uma vez. Quanto tudo parecia perfeito como um musical de Hollywood, um happy end com música-tema... o mundo ruiu, de novo. “Noir”.

A construção da cena da morte de Grent é o atestado da criatividade, originalidade e genialidade do diretor. E, principalmente, do seu estilo incomparável. A cena começa com toda a alegria de Kelly, com sua simples caixa de papelão contendo seu vestido de noiva embaixo do braço. Quando adentra a casa de Grent, a melodia que toca é a que nos emocionou minutos atrás com sua mensagem de esperança e amor. Mesmo sendo paraplégicos – marcados pelo destino – podemos amar e ser amados. Mesmo sendo uma ex-prostituta do submundo. Fuller nos faz acreditar, nos emociona, nos comove. Há um close no rosto encantado de Kelly, a câmera flutua, ela está no céu. Não há corte, seu rosto muda, de repente fica muito sério, olhou pra baixo e viu algo que não lhe agradou. Não sabemos o que é. O contracampo (o que ela vê) nos mostra um close de uma menina. Uma panorâmica nos mostra o saltitar daquela inocente criança que sai porta a fora. Volta o close de Kelly, Brent – também em close – aparece. Seus rostos preenchem a tela: a utilização do espaço do quadro como força dramática. O campo/contracampo rápido mostra a tensão. Ela está furiosa, ele continua com sua cara que estranhamos desde o começo e não sabíamos o que era. Kelly – com sua experiência de submundo – deveria ter acreditado mais em seus sentidos (que atestaram o “naked kiss” de Brent, a marca do pervertido). Mas aquela mulher não consegue não sonhar, ela precisa de ilusões. Tudo que ela queria era sair do submundo, onde ela sabe que a felicidade é impossível. Ele – que vive no outro mundo – faz parte do submundo, descobrimos que ninguém está isento de sujeira. A única diferença do submundo para esse é que aqui tudo é velado. Com a mesma emoção que Sam Fuller nos eleva à crença na beleza do ser humano, ele nos joga no abismo das culpas psicológicas, das doenças sociais, do ódio, da dor, da tragédia. O cinema de Samuel Fuller fere, não tem dó.


Kelly é presa por assassinato. Durante a correria para provar sua inocência, velhos desafetos vem acertar suas contas, incriminando-a. Griff, o bruto sentimental, é ambíguo o tempo todo quanto as suas crenças acerca do caráter de Kelly. Ele sabe que ela é que nem ele – habita os dois mundos, mas não pertence a nenhum. Ele sabe que ela é capaz do pior e do melhor. Não há parâmetros. Herói num segundo e anti-herói no outro. Esse é o ser humano: o que viveu alegrias e tragédias: o adulto. Só uma criança, que ainda não aprendeu a hipocrisia, pode atestar a verdade. Kelly é absolvida. Ela está livre pra ir embora da cidade. Na saída, a população, imóvel, a olha com ambigüidade. O primeiro plano da cidade volta – um plongée pegando a rua principal – a faixa que nos faz rir novamente, é o golpe irônico final do maldito diretor: “Piquenique anual da câmara do comércio para crianças deficientes. Clínica Ortopédica de Grantville”... créditos... ela segue... fade-out.

Mateus Moura.

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