quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O joio do trigo

Curto e grosso:
Se tivesse uma imagem para “O curioso caso de Benjamin Button” seria a de um cocozinho envernizado daqueles de desenho animado com um laço vermelho adornando-o. Ou um halterofilista impotente. Ou, brincando com o enredo,: um pobre bebe que já nasce velho.
O filme da Warner – produto industrial – cumpre seu principal objetivo: o lucro. Muito dinheiro investido e – acho – o grande público não vai decepcionar os cofres dos produtores. Enquanto cinema, porém, não vale o que o gato enterra.
E isso é bom! Quando surge um Benjamin Button, um Batman um Hospedeiro crescem, um Zodíaco se fortalesce...
Existem filmes bons e ruins. Blockbusters geniais e produtos de segunda categoria. Oscar e Valor. Indústria e Cinema.
e .


Mateus Moura.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Das trevas ao coração


Lang, Fuller, Ford, Hawks, Hitchcock, Leone, Siegel. Filho de um western spaghetti e de um policial pós-noir (moderno), herdeiro de um cinema (clássico) americano. “O mais clássico dos modernos, o mais moderno dos clássicos”, alguém disse, serve perfeitamente pra Leone, acredito; cabe em Clint. Ficar repetindo que Clint Eastwood segue a premissa de um cinema clássico por apresentar uma “narrativa clara” soa meio estranho dentro de Hollywood, já que, produtora ainda hoje de contadores de estórias, preza pelo grande público (que espera uma estória palatável narrativamente). Clint – verdade seja dita - sabe agradar este público: oferece uma grande estória, com muita emoção (e ação) e uma narrativa clara (o que não quer dizer convencional, ou comportada). Seus filmes vendem muito bem. Graças a deus.
Existem níveis de leitura.
Clint Eastwood diretor: amadurecimento de uma imagem-clint: a complexidade de um cavaleiro solitário das trevas que acumula rugas e cavalga a melodia melancólica de cada nova nota. Existem os filmes em que atua (e aí entra a imagem-clint, que sai das trevas pra ganhar mais uma ruga, e voltar), e existem os filmes em que não atua.
A troca (The changeling) Clint “apenas” dirige. Desta vez são: a mãe coragem que perdeu o filho, o psicopata injustificado, o garoto inocência perdida, as famílias de filhos brutalmente assassinados, e resumindo: o espectador - na catarse - que mergulhará nas trevas que a música de Eastwood vai melancolicamente encharcar.
É normal na crítica defender ou criticar um filme de Clint Eastwood pelos motivos errados. Por exemplo, elogiar um filme policial como “Dívida de sangue” pela trama bem amarrada na descoberta do vilão (enquanto existe uma reflexão sobre o envelhecimento de um corpo que atravessou a história cinema, além de metalinguagem do próprio gênero e sua arqueologia significante, etc – todas reflexões que só Clint poderia fazer, e faz). E: criticar um filme como “Sobre meninos e lobos” (ou mesmo “A troca”) porque os personagens fazem um “tipo afetado”, “que vivem chorando”... enfim, é como nos dramas dos Átridas, é trágico, é triste... não seria este o cinema de Clint quando não atua: um cinema de lágrimas?
É trágico, vazio e solitário o fim da travessia dos seus personagens. Não existe redenção para o personagem clintiano! O filme acaba, os créditos sobem, a música caminha para os últimos acordes... limpamos as lágrimas e saímos da caverna.
O que é a essência de um autor como Clint Eastwood? Onde se deve procurar o coração dos corações!?
Sempre foi problemática a noção de autor na sétima arte. Um homem pinta um quadro, uma mulher escreve um livro. Clint Eastwood nunca escreveu seus roteiros, e a maioria foram adaptados de livros. A questão é: Sabemos que vemos um filme de Clint Eastwood... porquê?
Se gastam palavras e palavras falando sobre o roteiro dos filmes do velho mestre – existe uma velha mania de recontar o óbvio. Será que é por aí que se procura? Por exemplo: 90 % de um texto falando todo o percurso que Collins faz no processo (kafkiano) social e uma conclusão do tipo: “Clint, o bom e velho mestre, com sua linguagem clássica, nos dá mais um belo e emocionante filme, crítico e atual”. È óbvia uma reflexão do cineasta na questão da Justiça, da América, da Democracia, da Jurisprudência em sua filmografia; corrupto ou justiceiro, ou os dois ao mesmo tempo, Clint sempre questionou as instituições e a decisão – sempre complicada - de uma punição ou de uma remissão. Falar que o filme é maravilhoso por isso é pouco para um cineasta como este – é o mínimo. A questão da crítica social em ‘A Troca’ é um coração do filme, assim como a bela produção: reconstrução de uma época, com direito à nostalgia de abertura da Universal e fotografia que começa e termina em preto e branco. Lindo! Dois corações, mas procurar O!
A questão talvez seja por aqui: uma troca de olhares, um olhar de esperança, um último olhar. Não falo apenas das personagens. Quando a câmera se posiciona em primeiro plano e a personagem olha para fora do quadro, no raccord veremos o que ela olha, seremos um só olhar. Identificação: o drama de um personagem, durante a projeção, é o nosso drama, o drama do eu que é nós. É o drama! É o melodrama? Clint Eastwood constrói os primeiros 15 minutos do filme de modo inesquecível, são últimos olhares, que ecoarão nas caixas de nossas memórias a cada troca de olhar da personagem com o outro, a cada olhar de esperança da personagem com o desconhecido. É necessário apenas um acorde, uma atmosfera, as trevas pesam sobre nós, o coração bate; resgatamos, na caixa, a memória daquele último olhar.
A música emocionante, chorada, melancólica de Clint talvez seja a chave para entender que ele, além de fazer diversos e excelentes filmes de gênero, críticos éticos e sociais, intertextuais à sua obra e a uma arqueologia do cinema; também, na unidade de seu percurso, faz uma elegia: todos os seus filmes (policiais, westerns, love stories, war movies, tragédias) constituem um verso a mais num grande poema lírico e triste: uma elegia sobre os extremos humanos: as trevas e o coração.


Mateus Moura

sábado, 9 de agosto de 2008

A heroína trágica



“Nenhum mortal é feliz até o fim, nenhum, nem afortunado, pois nunca nasceu alguém imune à dor”. (Eurípides)

Prólogo: Jazz, como um trumpete rasgante ela surge em cena dando bolsadas na câmera-subjetiva-dele: o cafetão; que bêbado, derrubando-lhe a peruca, cai, suplicando misericórdia. Ela espirra água na sua cara e arranca-lhe do bolso o dinheiro. Ela está roubando ele? Logo sabemos que não. É uma prostituta, uma mulher do submundo, é escória, mas tem princípios. Pega o que lhe é de direito, rasga as evidências de sua existência, apanha a peruca, e ajeita (em quadro)... créditos... Fuller mostra seu cartão de visitas, a violência da emoção, a criatividade original, Sam Fuller contra o banal. Sua personagem entrará num novo mundo, numa cidade distante. Seu desejo lhe guiará para outra vida (uma que não espelhe notas, uma garrafa e uma cama para o resto da vida). De prostituta à enfermeira de deficientes físicos. Ela irá sorrir, irá sonhar. O mundo parecerá melhor. Parecerá.


Samuel Fuller dá ao mundo em 64 a continuação de “Paixões que alucinam”, a mesma atriz (a soberba Constance Tower), que viveu uma dançarina de cabaré no filme de 63, interpreta uma prostituta agora em 64. Em “Paixões que alucinam”, seu amante, enlouquecido pelo prêmio Pulitzer de jornalismo, enlouquece ao tentar solucionar um caso de assassinato em um manicômio. Ela afunda junto com ele, mas em lágrimas e tragédia. Constance Tower é a heroína fulleriana. Diferente do herói de Fuller: duro e sem ilusões, a heroína tem ilusões, sonha, mas é dura, e não lhe é permitido o cobertor da insanidade. O mundo e o Destino sempre a derrubam. Ela afunda, mas limpa as lágrimas, levanta, e segue.

Sam Fuller é um grande construtor de grandes metáforas. Assim como em “Paixões que alucinam”, - fazendo alusão ao manicômio - a pequena cidade de Grentville é microcosmo da América. Com atuações magníficas, planos inesquecíveis, brincadeira com gêneros hollywoodianos, o artista americano maldito assina seu último filme nos EUA antes de partir pra Europa: O beijo amargo (The naked kiss, 64). Ninguém critica mais a América do que os americanos.

Anarquista, iconoclasta, maldito, corrupto, contrabandista e gênio. Fuller nos apresenta, com sua câmera desnudadora, a podridão da hipocrisia. Com seu habitual irônico humor negro, nos apresenta a cidade com uma bela faixa, que nos faz rir: “Desfile de moda para crianças deficientes. Clínica Ortopédica de Grentville”. O contraste que o diretor estabelece entre o submundo e o outro mundo é exagerado de propósito, mais uma carta irônica na manga do sátiro. Quando Kelly (Constance Tower), mulher dos dois mundos, se integra ao outro mundo, as cenas chegam ao paroxismo do confortável. A dona de casa onde Kelly se hospeda é tão doce que chega a ser risível. Mas nada é simples nos filmes de Samuel Fuller, nenhum personagem é apenas um estereótipo. Todas são símbolos, mas carregam vida. Todos sofreram ou sofrem alguma tragédia. A dona de casa, por exemplo, é solitária, o homem que esperava não sobreviveu à guerra. Griff (Anthony Eisley) é como Kelly, transita entre os dois mundos. È mais frio, mais desconfiado, sem ilusões, mais podre, mais honestamente podre: o herói fulleriano.

O diretor, analista emocionado do ser humano e suas paixões, trata pela primeira vez na história do cinema do tema da pedofilia. Grent (Michael Dante), supostamente um homem caridoso, rico, moralmente perfeito, é também um pedófilo. Apaixonado por Kelly, aceita se casar, mesmo sabendo do seu passado “bombom”. Kelly, porém, quando aceita, desconhece seu presente doentio. Grent acredita que eles – anormais – podem se acertar, ser felizes e aceitar as inclinações mórbidas, assim como os passados sujos. Ela não entende assim, não aceita sua doença, não aceita acordo, nem sequer cogita a possibilidade. Como um doce piano que esparrama a melodia triste da tragédia, ela levanta a mão, e o mata. Seu mundo ruiu mais uma vez. Quanto tudo parecia perfeito como um musical de Hollywood, um happy end com música-tema... o mundo ruiu, de novo. “Noir”.

A construção da cena da morte de Grent é o atestado da criatividade, originalidade e genialidade do diretor. E, principalmente, do seu estilo incomparável. A cena começa com toda a alegria de Kelly, com sua simples caixa de papelão contendo seu vestido de noiva embaixo do braço. Quando adentra a casa de Grent, a melodia que toca é a que nos emocionou minutos atrás com sua mensagem de esperança e amor. Mesmo sendo paraplégicos – marcados pelo destino – podemos amar e ser amados. Mesmo sendo uma ex-prostituta do submundo. Fuller nos faz acreditar, nos emociona, nos comove. Há um close no rosto encantado de Kelly, a câmera flutua, ela está no céu. Não há corte, seu rosto muda, de repente fica muito sério, olhou pra baixo e viu algo que não lhe agradou. Não sabemos o que é. O contracampo (o que ela vê) nos mostra um close de uma menina. Uma panorâmica nos mostra o saltitar daquela inocente criança que sai porta a fora. Volta o close de Kelly, Brent – também em close – aparece. Seus rostos preenchem a tela: a utilização do espaço do quadro como força dramática. O campo/contracampo rápido mostra a tensão. Ela está furiosa, ele continua com sua cara que estranhamos desde o começo e não sabíamos o que era. Kelly – com sua experiência de submundo – deveria ter acreditado mais em seus sentidos (que atestaram o “naked kiss” de Brent, a marca do pervertido). Mas aquela mulher não consegue não sonhar, ela precisa de ilusões. Tudo que ela queria era sair do submundo, onde ela sabe que a felicidade é impossível. Ele – que vive no outro mundo – faz parte do submundo, descobrimos que ninguém está isento de sujeira. A única diferença do submundo para esse é que aqui tudo é velado. Com a mesma emoção que Sam Fuller nos eleva à crença na beleza do ser humano, ele nos joga no abismo das culpas psicológicas, das doenças sociais, do ódio, da dor, da tragédia. O cinema de Samuel Fuller fere, não tem dó.


Kelly é presa por assassinato. Durante a correria para provar sua inocência, velhos desafetos vem acertar suas contas, incriminando-a. Griff, o bruto sentimental, é ambíguo o tempo todo quanto as suas crenças acerca do caráter de Kelly. Ele sabe que ela é que nem ele – habita os dois mundos, mas não pertence a nenhum. Ele sabe que ela é capaz do pior e do melhor. Não há parâmetros. Herói num segundo e anti-herói no outro. Esse é o ser humano: o que viveu alegrias e tragédias: o adulto. Só uma criança, que ainda não aprendeu a hipocrisia, pode atestar a verdade. Kelly é absolvida. Ela está livre pra ir embora da cidade. Na saída, a população, imóvel, a olha com ambigüidade. O primeiro plano da cidade volta – um plongée pegando a rua principal – a faixa que nos faz rir novamente, é o golpe irônico final do maldito diretor: “Piquenique anual da câmara do comércio para crianças deficientes. Clínica Ortopédica de Grantville”... créditos... ela segue... fade-out.

Mateus Moura.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Um Shakespeare escrito por um leitor de Tolstoi que discute Sófocles, diretamente do Brooklin

Sonhos de Cassandra – diferente de Scoop, seu filme anterior – respira dentro da obra de Woody Allen. O bom e velho amigo tem algo a dizer. Na sua filmografia se segue, há tempos, uma repetição de si. “Crimes e pecados” se reflete mais uma vez, depois de Match Point, neste novo filme; mas não é só isso. O irônico Woody já tem a tranqüilidade e a maturidade pra poder brincar sério. Desde a trilha de Glass e o sotaque britânico puxadíssimo, ele ambienta o filme na Inglaterra, longe do Brooklin, longe dos velhos temas pessoais, Allen pode brincar com a vida, pode falar sério, brincando. Brincando de ser inglês, de novo; desta vez acertando.

Existe a tendência de rotular fases na carreira de Woody Allen, sendo a atual classificada como sua fase “fora de Nova York”, e ponto. Essa idéia ganha força com o tema que é comum aos seus três últimos filmes: o crime. Os textos pré-fabricados de grande parte da crítica sobre Allen - que se repetem mais do que o próprio diretor se repetiu nos últimos anos -, não se dão ao trabalho de observar as nuances de algumas de suas obras, pois o olhar já está treinado pra identificar as características “clássicas” de um “legítimo” Woody Allen - a marca, e não o autor. E qualquer um que ASSISTA Sonhos de Cassandra percebe que o que temos é um filme de sutilezas, e de uma grandeza madura-reflexiva-irônica.


Uma trama é estabelecida dentro do mundo que conhecemos, nada de novo, os bons e velhos temas shakespearianos: poder, ganância, família, crime. Um Woody realista, ao extremo. Allen nos mostra – através da mise-en-scène, apresentação dos personagens, montagem - que a nossa tragédia é só mais uma, de milhões que acontecem todos os dias. O que acontece é que estamos assistindo esta que Woody apresenta, e Allen (sua direção) está indiferente, como a atriz é indiferente à morte do “amigo” do Tio Howard que ela lê no jornal para o não-indiferente-por-ter-participado-do-crime Ian. Essa indiferença salta aos olhos quando do desfecho - que deveria ser o ponto mais dramaticamente crítico de toda a narrativa - Allen faz uma montagem que intercala a tragédia com uma cena de dois policiais que nada de novo vêem naquilo (mais uma tragédia urbana estranha cotidiana) e ainda com outra cena onde vemos as duas mulheres dos irmãos comprando roupas para seus cadáveres (ignorantes do que se passa), “apenas” para dimensionar os dramas pessoais até seu verdadeiro tamanho, que é quase insignificante. A desdita – essencial numa boa tragédia segundo Aristóteles (Woody discute também tragédia grega no filme) – é a morte dos dois irmãos. É trágico. Acontece na diegese fílmica. Allen não dá importância. É a estrutura dramática funcionando em função da direção; que é realista, indiferente: um Woody Allen inglês, calmo, analista, desta vez de costas pro divã.

O rigor e o vigor na direção agrada os olhos. Allen nos lembra (justo ele, um dos autores cujo talento sempre foi medido pela capacidade de escrever bons diálogos) que cinema não é meramente roteiro, que cinema não é meramente atuação, cinema é sim, principalmente, - sempre vale ratificar - direção. Cenas belíssimas são construídas, e o corte é rápido. Ian, que no início tem uma namorada; após conhecer a bela atriz, se apaixona e a ex some da história. Aparece no filme depois, durante alguns segundos para entrar numa cena onde Ian fala da sua paixão nova para o pai, ela aparece no canto do quadro, Woody nos faz lembrar de sua existência, e corta. Um afago – improvável - da mãe com o marido é dito com uma frase em outra cena, e corte, Allen e visão realista de seus personagens. Não existe a exploração de momentos com potencial dramático, o que faz com que as cenas destacadas ganhem ainda mais força, pela sua discrição. “Cassandra’s dreams” fala em nuances e elipses, diz para quem sabe ouvir. Nada complexo, na linguagem mais simples, indiferente e realista, reflexiva. Woody Allen dirige este filme como Tolstoi escreveu seu “A morte de Ivan Ilítch”. A trama é shakespeariana (de quem Dostoievski foi leitor). Os personagens não são tão complexos, mas não são tão simples. Sabemos o que são, ou vamos descobrindo tranqüilamente. As melhores cenas são as puramente visuais, e as que não vemos. Tio Howard é citado desde o início do filme pelas suas qualidades e sucesso profissional, enquanto o pai é humilhado pela mãe por sua falta de colhões. Tudo isso é discutido, Allen discute a ética do sentar no banco da corrupção pra se dar bem na vida ou ser o motorista de quem se arriscou na empresa. Mostra o crepúsculo (os pais) e a aurora (os filhos). E as decisões ordinárias.


A apresentação do Tio Howard nos esclarece a intenção estética/ética de Allen no filme: depois de tanto ser falado (quase um fantasma no filme), ele, ao chegar no aeroporto, é logo apresentado na cena, sem grandes preparações. A intenção é a desdramatização, um tio chegou no aeroporto, é o Tio Howard, e daí?


A ausência tem força no filme. Além do Tio Howard na primeira parte, Ian exerce – por vezes - presença mais forte quando não está no quadro. Na cena da proposta do Tio Howard, o enquadramento do tio e Terry juntos dialogando com Ian, a presença do ator se torna mais forte quando não podemos vê-lo, e o diretor se detém na reação e interação dos outros personagens com ele. É o poder do extra-campo, recurso usado brilhantemente neste filme. A mise-en-scène que o diretor compõe nessa cena - onde ocorre a mudança radical da imagem do personagem do tio - é simples, cuidadosa e bela. Quando resolve falar sobre um assunto sério com seus sobrinhos, uma chuva começa, o tempo muda, maus tempos. Tio Howard calmamente os convida para ficar debaixo da árvore, a árvore os protegerá. O temporal de problemas pode ser amainado pela árvore da família. Woody Allen faz cinema, mise-en-scène pura e sutil, como um “gentleman”.

Woody Allen segue seu “trampo” de um filme por ano. Às vezes erra, às vezes acerta. Às vezes não tem nada a dizer e repete as piadas, às vezes tem algo a dizer e repete a receita. Pra que pirar no roteiro?, ele pensa. Vou seguir a receita, repetir o mesmo papo e falar do que eu quero falar. Desta vez: insignificância da vida humana. E – desde Shakespeare - viva o MacGuffin (inglês)! Woody Allen escarnece risonho, como os troianos fizeram com os sonhos de Cassandra. Cassandra – por ser humana e, logo, se julgar especial – alimentava dentro de si que sua vida era uma tragédia... assim é o ser humano: a dor de barriga própria é uma tragédia maior que toda a fome da Nigéria. Mas assim é! Os sonhos de Cassandra são importantíssimos pra ela – e na verdade, enquanto escarnecem dela, tais sonhos na realidade revelam o futuro. Eles não sabem, e para eles não importa. Ela sabe, e para eles não importa. Mas assim é! O que é importante afinal? As tragédias alheias importam, mas não importam: como todas as tragédias cotidianas de cada um.

Mateus Moura e Felipe Cruz.

Alo Alo

Sobre cinema, blog pessoal, liberdade de falar disponibilidade de ouvir, publicação informal, simples e sério, contradição, eu.

Mateus Moura.