quarta-feira, 30 de julho de 2008

Um Shakespeare escrito por um leitor de Tolstoi que discute Sófocles, diretamente do Brooklin

Sonhos de Cassandra – diferente de Scoop, seu filme anterior – respira dentro da obra de Woody Allen. O bom e velho amigo tem algo a dizer. Na sua filmografia se segue, há tempos, uma repetição de si. “Crimes e pecados” se reflete mais uma vez, depois de Match Point, neste novo filme; mas não é só isso. O irônico Woody já tem a tranqüilidade e a maturidade pra poder brincar sério. Desde a trilha de Glass e o sotaque britânico puxadíssimo, ele ambienta o filme na Inglaterra, longe do Brooklin, longe dos velhos temas pessoais, Allen pode brincar com a vida, pode falar sério, brincando. Brincando de ser inglês, de novo; desta vez acertando.

Existe a tendência de rotular fases na carreira de Woody Allen, sendo a atual classificada como sua fase “fora de Nova York”, e ponto. Essa idéia ganha força com o tema que é comum aos seus três últimos filmes: o crime. Os textos pré-fabricados de grande parte da crítica sobre Allen - que se repetem mais do que o próprio diretor se repetiu nos últimos anos -, não se dão ao trabalho de observar as nuances de algumas de suas obras, pois o olhar já está treinado pra identificar as características “clássicas” de um “legítimo” Woody Allen - a marca, e não o autor. E qualquer um que ASSISTA Sonhos de Cassandra percebe que o que temos é um filme de sutilezas, e de uma grandeza madura-reflexiva-irônica.


Uma trama é estabelecida dentro do mundo que conhecemos, nada de novo, os bons e velhos temas shakespearianos: poder, ganância, família, crime. Um Woody realista, ao extremo. Allen nos mostra – através da mise-en-scène, apresentação dos personagens, montagem - que a nossa tragédia é só mais uma, de milhões que acontecem todos os dias. O que acontece é que estamos assistindo esta que Woody apresenta, e Allen (sua direção) está indiferente, como a atriz é indiferente à morte do “amigo” do Tio Howard que ela lê no jornal para o não-indiferente-por-ter-participado-do-crime Ian. Essa indiferença salta aos olhos quando do desfecho - que deveria ser o ponto mais dramaticamente crítico de toda a narrativa - Allen faz uma montagem que intercala a tragédia com uma cena de dois policiais que nada de novo vêem naquilo (mais uma tragédia urbana estranha cotidiana) e ainda com outra cena onde vemos as duas mulheres dos irmãos comprando roupas para seus cadáveres (ignorantes do que se passa), “apenas” para dimensionar os dramas pessoais até seu verdadeiro tamanho, que é quase insignificante. A desdita – essencial numa boa tragédia segundo Aristóteles (Woody discute também tragédia grega no filme) – é a morte dos dois irmãos. É trágico. Acontece na diegese fílmica. Allen não dá importância. É a estrutura dramática funcionando em função da direção; que é realista, indiferente: um Woody Allen inglês, calmo, analista, desta vez de costas pro divã.

O rigor e o vigor na direção agrada os olhos. Allen nos lembra (justo ele, um dos autores cujo talento sempre foi medido pela capacidade de escrever bons diálogos) que cinema não é meramente roteiro, que cinema não é meramente atuação, cinema é sim, principalmente, - sempre vale ratificar - direção. Cenas belíssimas são construídas, e o corte é rápido. Ian, que no início tem uma namorada; após conhecer a bela atriz, se apaixona e a ex some da história. Aparece no filme depois, durante alguns segundos para entrar numa cena onde Ian fala da sua paixão nova para o pai, ela aparece no canto do quadro, Woody nos faz lembrar de sua existência, e corta. Um afago – improvável - da mãe com o marido é dito com uma frase em outra cena, e corte, Allen e visão realista de seus personagens. Não existe a exploração de momentos com potencial dramático, o que faz com que as cenas destacadas ganhem ainda mais força, pela sua discrição. “Cassandra’s dreams” fala em nuances e elipses, diz para quem sabe ouvir. Nada complexo, na linguagem mais simples, indiferente e realista, reflexiva. Woody Allen dirige este filme como Tolstoi escreveu seu “A morte de Ivan Ilítch”. A trama é shakespeariana (de quem Dostoievski foi leitor). Os personagens não são tão complexos, mas não são tão simples. Sabemos o que são, ou vamos descobrindo tranqüilamente. As melhores cenas são as puramente visuais, e as que não vemos. Tio Howard é citado desde o início do filme pelas suas qualidades e sucesso profissional, enquanto o pai é humilhado pela mãe por sua falta de colhões. Tudo isso é discutido, Allen discute a ética do sentar no banco da corrupção pra se dar bem na vida ou ser o motorista de quem se arriscou na empresa. Mostra o crepúsculo (os pais) e a aurora (os filhos). E as decisões ordinárias.


A apresentação do Tio Howard nos esclarece a intenção estética/ética de Allen no filme: depois de tanto ser falado (quase um fantasma no filme), ele, ao chegar no aeroporto, é logo apresentado na cena, sem grandes preparações. A intenção é a desdramatização, um tio chegou no aeroporto, é o Tio Howard, e daí?


A ausência tem força no filme. Além do Tio Howard na primeira parte, Ian exerce – por vezes - presença mais forte quando não está no quadro. Na cena da proposta do Tio Howard, o enquadramento do tio e Terry juntos dialogando com Ian, a presença do ator se torna mais forte quando não podemos vê-lo, e o diretor se detém na reação e interação dos outros personagens com ele. É o poder do extra-campo, recurso usado brilhantemente neste filme. A mise-en-scène que o diretor compõe nessa cena - onde ocorre a mudança radical da imagem do personagem do tio - é simples, cuidadosa e bela. Quando resolve falar sobre um assunto sério com seus sobrinhos, uma chuva começa, o tempo muda, maus tempos. Tio Howard calmamente os convida para ficar debaixo da árvore, a árvore os protegerá. O temporal de problemas pode ser amainado pela árvore da família. Woody Allen faz cinema, mise-en-scène pura e sutil, como um “gentleman”.

Woody Allen segue seu “trampo” de um filme por ano. Às vezes erra, às vezes acerta. Às vezes não tem nada a dizer e repete as piadas, às vezes tem algo a dizer e repete a receita. Pra que pirar no roteiro?, ele pensa. Vou seguir a receita, repetir o mesmo papo e falar do que eu quero falar. Desta vez: insignificância da vida humana. E – desde Shakespeare - viva o MacGuffin (inglês)! Woody Allen escarnece risonho, como os troianos fizeram com os sonhos de Cassandra. Cassandra – por ser humana e, logo, se julgar especial – alimentava dentro de si que sua vida era uma tragédia... assim é o ser humano: a dor de barriga própria é uma tragédia maior que toda a fome da Nigéria. Mas assim é! Os sonhos de Cassandra são importantíssimos pra ela – e na verdade, enquanto escarnecem dela, tais sonhos na realidade revelam o futuro. Eles não sabem, e para eles não importa. Ela sabe, e para eles não importa. Mas assim é! O que é importante afinal? As tragédias alheias importam, mas não importam: como todas as tragédias cotidianas de cada um.

Mateus Moura e Felipe Cruz.

11 comentários:

glenda marinho disse...

Gostei do filme e gostei do texto.
Parabéns meninos, não só pelo o que texto diz, mas pela maneira como foi escrito.

=*

Lucases disse...

o texto ta fodasso

Mark disse...

Parabéns pelo blog e pelo texto, Mateus e Felipe. Fiz um texto sobre Allen e seu Cassandra's Dream logo após ver a obra. Publicarei este fim de semana. Allen depois de velho aprende a fazer cinema. Nunca é tarde para abraçar a sétima-arte, de fato.

Abração aos dois.

Maurício Borba Filho disse...

Muito bom o texto =) eu não tinha lido nada sobre Cassandra´s Dream quando fui ver e não sabia muito bem o que esperar. Só esperava não ver o Allen "hipocondríaco" e ácido de sempre, apesar de adorá-lo. E mesmo assim estranhei um pouco no primeiro contato e cheguei a dizer até ser um dos filmes que eu menos gostei dele. Mas engraçado que no mesmo dia eu fiquei pensando sobre o que eu tinha visto e comentei com a Glenda que mudei completamente de opinião. Quero revê-lo!

Felipe disse...

Bonito mesmo nosso texto. =)

Só discordo do Mark, não acho que o Allen aprendeu a fazer cinema depois de velho... Pra mim ele já sabia... mas nem sempre lembrava, por assim dizer...

Mateus Moura disse...

legal.. Belém vai ta cheio de criticas sobre o Cassandra =b

obrigado e abraços a todos.

Anônimo disse...

As vezes quando quem escreve a respeito de uma obra de arte,escreve de forma competente,faz com que a obra fique maior do que na realidade o é.
Este é o caso!
Voces além de interpretarem bem as intenções do autor, conseguiram fazer de uma filme razoável, um filme importante.

Unknown disse...

Eu só fico com peninha da Cassandra de Tróia... já q ela foi superada por esse texto perspicaz e visionário,rs, ah! ia esquecendo, e "Bonito" tbm,rsrs!

Breno Yared disse...

Eu tô curioso para ver esse Allen depois de tantos elogios. A única fase dele que eu realmente não suporto é a "Bergman".

Boa a sorte a vocês!ax

Mateus Moura disse...

Obrigado Leandro, acho vc exagerou no elogio, me sinto lisongeado por ouvir isso de vc..

grande abraço, visite sempre, será sempre bem-vindo.

Mel Portela disse...

Mesmo quando ele erra ou teima em "repetir a receita", não deixa de ser delicioso, não é mesmo?